Blog

Sara Araújo fala sobre a necessidade de naturalizar a presença de pessoas negras no mercado da cerveja

Beer sommelière pela Doemens, Sara é responsável pela aula "Racismo e a necessidade de ser antirracista no mercado cervejeiro" do Beer Expert

Foi a percepção da ausência de pessoas negras em ambientes cervejeiros que fez com que Sara Araújo começasse a estudar cerveja. Formada em Direito e cursando Ciências Sociais, Sara trabalha na área jurídica e é beer sommelière pela Doemens. 

Ela é a criadora da Negra Cervejas Sommelier (@negracervejassommelier), página que a que aborda temas como cerveja, história de pessoas negras, além de conteúdos sobre gênero e diversidade sexual. No Science of Beer, Sara Araújo vai ministrar a aula "Racismo e a necessidade de ser antirracista no mercado cervejeiro" no curso Beer Expert

Nesta entrevista, a beer sommelière fala sobre e a importância de criar oportunidades e condições para que mais pessoas negras possam estudar cerveja e atuar nas mais diferentes atividades relacionadas ao mercado cervejeiro. 

 

Qual é o cenário atual do mercado brasileiro de cervejas em relação à participação de profissionais negros?

Sara: Eu desconheço pesquisas no Brasil que tratem dessa questão, que quantifiquem pessoas negras no mercado de cerveja. Foi em razão disso que eu e alguns amigos ligados ao mercado cervejeiro estamos organizando um coletivo para tentar mapear esses profissionais, e também para entender quais são as dificuldades que eles enfrentam, que eles sofrem e perpassam a vivência deles e delas. O projeto está em fase de construção e será divulgado em breve.

Mas a maioria das pessoas profissionais que eu converso - que são poucas, diga-se de passagem - falam dessa ausência [de profissionais negros]. Se você mirar os festivais cervejeiros deste país, as fotos que são publicadas, os nomes que aparecem, quantas pessoas pretas estavam lá? A ausência é gigantesca. Vemos uma quantia muito pequena de pessoas negras nesses espaços porque temos um mercado notadamente brancocêntrico. 

Eu participava de alguns festivais como consumidora - porque notadamente é o que eu sou, já que mesmo com meu diploma como sommelière eu não exerço a profissão diretamente - e via número bem reduzido de pessoas negras participando do evento, curtindo o evento. Mas era só fazer o teste do pescoço e olhar quantas pessoas negras estavam limpando o chão, recolhendo recicláveis, fazendo a segurança do lugar. 

Não há nada de errado em estar nessas funções. Mas por que elas são os únicos espaços para as pessoas negras? Quantos mestres cervejeiros negros têm nesse país? Quantos sommeliers negros tem nesse país? Quantos professores negros dentro do campo da cerveja tem nesse país? Ainda são poucos.

É um desafio para o campo da cerveja resolver, não é um desafio para as pessoas negras resolverem. Até porque o racismo não foi inventado pelas pessoas negras. A gente vê  a partir desse olhar uma manutenção do status quo, porque como eu disse, em posições de status estão pessoas brancas e em lugares que não são de destaque estão as pessoas negras.

São perguntas e problemáticas que estão aí e que as pessoas que estão nessa área que vão ter que dar conta, vão ter que resolver. Não cabe às pessoas negras porque não são elas que detêm o poder da caneta,  elas não detém a estrutura e o poder do dinheiro. Cabe a quem está nessa dinâmica, que detém o poder do discurso, mudar essa caminhada. 



Quais são os principais problemas e desafios que profissionais negros enfrentam no mercado de cervejas?

S: Essa é uma pergunta que precisa ser levada para toda a diversidade negra que atua nesse campo.  A régua que me cabe, das pessoas que eu converso e que são profissionais da área, é a invisibilidade, um destratamento muito grande. É o que a gente mais ouve, principalmente de mulheres. Não há uma respeitabilidade direcionada a esses corpos. 

Além disso,  há nos espaços ligados à cerveja artesanal, como já mencionei, a ausência de pessoas negras tomando cerveja, curtindo o ambiente ou mesmo no serviço de taproom. A gente sabe que isso não ocorre só no meio da cerveja, mas o meio da cerveja é notadamente voltado para homens brancos cis heteronormativos.

Então eu fiz o curso de beer sommelier em 2018 justamente porque não me via nesses espaços e isso me causava um grande incômodo. Depois criei minha página para tratar desse assunto e falar da ausência de uma presença maciça de pessoas negras nesses espaços.

 

Quando o tema do racismo entra em debate, é comum vermos tentativas de diminuir ou relativizar as questões raciais. Por que é importante discutir o aspecto estrutural do racismo - não só no mercado de cervejas, como na sociedade como um todo?

S: Por que existe uma tentativa de silenciamento das pessoas negras quando elas pautam o racismo? Porque estamos falando de derrubada de estrutura. O racismo deu muito certo, porque coloca pessoas não brancas em situação de subalternidade; e pessoas brancas em condições melhores, tendo melhor acesso à saúde, à educação, ao lazer, à moradia. 

Vários direitos que são fundamentais e deveriam estar implicados à todas as pessoas conforme a Constituição da República prega, infelizmente, estão alocados a determinados corpos, que não são negros e de povos originários.

Não é um pessoa negra que tem que responder esta pergunta, porque essa não é uma questão que lhe cabe. Quem pratica o racismo não são as pessoas negras, então não cabe às pessoas negras resolverem um problema que não é delas. Pessoas negras acabam sofrendo a violência de uma sociedade que se estruturou na tecnologia do racismo para manter privilégios. 

 

Como cervejarias, bares e outras empresas de cerveja podem se posicionar ativamente (e de maneira concreta) no combate ao racismo?

S: Eu penso que o primeiro passo por conta de uma reparação histórica. Estamos falando de reparação histórica, sim! Temos o comando legislativo que aponta para isso, por conta de toda essa construção que nós temos. Somos um dos últimos países a abolir a escravização de pessoas, e não foi feito num gesto benéfico. Isso só ocorreu porque a elite temia que essas pessoas que estavam escravizadas tomassem conta das terras.

Temos a lei de 1850, que dá diretrizes sobre o acesso à terra, e as pessoas temiam isso. Esse foi um dos grandes vetores para que o dia 13 de maio de 1888 fosse possível. Mas o que aconteceu no dia 14 de maio de 1888?

Todas essas pessoas negras que foram escravizadas como mão-de-obra para que o acúmulo de capital deste país fosse possível. Afinal de contas, elas trabalharam 359 anos sofrendo com açoites, violência, estupros e das mortes para que fazendeiros e a elite brasileira pudessem ter o capital para reinvestir em si mesma.

O que foi feito com essas pessoas que deram a vida, o sangue e tudo que fosse possível? Foram jogadas à margem. Não teve uma política pública direcionada à essas pessoas. 

Os donos dos ex-escravos foram indenizados. Os escravizados ficaram no dia seguinte sem casa e comida, e sem direito à saúde e educação. Nós precisamos ter essa reparação histórica por conta dessa disparidade dentro do tecido social.

Por exemplo, cervejarias podem fazer convênios com escolas como Science of Beer ou qualquer outra escola direcionada à cerveja, para formar sommeliers, mestres cervejeiros, e profissionais ligados à cadeia da cerveja para executar os trabalhos. Para vermos essas pessoas em condições de destaque também. 

Estamos em uma sociedade que cobra diploma e competência, e para que você tenha tudo isso é preciso estudar. E nós sabemos que os cursos são caros e que a população negra foi prejudicada e é uma das mais descapitalizadas. 

Penso que criar bolsas e ações afirmativas para inserir essas pessoas no campo do trabalho, porque elas tem competência, o que falta é oportunidade. 

 

Qual é a importância da criação de ações afirmativas - como a do Science of Beer - e de ações para promover um ensino mais democrático da cerveja?

S: As ações afirmativas são extremamente necessárias em qualquer área de conhecimento. São comandos legais já existentes, tem ações afirmativas relacionadas à cotas nas universidades, no serviço público. As empresas privadas também podem ter ações afirmativas e podem, inclusive, receber dedução de Imposto de Renda. É extremamente importante ações como essas. 

Precisamos de profissionais qualificados, porque o mercado cobra. São cursos caros, eu fiz o curso e paguei um valor considerável. Em outra época, eu não conseguiria. Eu só consegui, porque hoje o meu trabalho, a minha profissão me permite.

Mas há quatro anos atrás isso seria inviável na minha realidade, não teria condições nenhuma de pagar um curso como este. Acho que cada vez mais isso tem que ser ampliado, não só no Science, mas em todas as escolas, porque isso se chama responsabilidade social. 

Toda empresa trabalha com responsabilidade social. Por que não trabalhar com o letramento racial? Ainda mais considerando que nós somos uma das sociedades mais desiguais e mais racistas do mundo. Principalmente o racismo velado - que não é tão velado assim. Ele é muito explícito.

Nós vimos na semana passada os ataques à Cervejaria Implicantes*, isso mostra o quanto é importante inserir profissionais negros e negras no mercado. Porque o que acontece é que quando as pessoas não veem pessoas negras no mercado, elas naturalizam a ausência.

Da mesma forma, se naturaliza a presença do negro em espaços como cadeias.  O fato de que a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado neste país também se naturalizou.Isso é normal? Numa sociedade que se diz civilizada, isso é uma anomalia gigante. 

E por que se normaliza? Porque as pessoas entendem que os corpos negros não são dignos de humanidade. Ações como essa [ações afirmativas] são necessárias para naturalizar cada vez mais a presença de pessoas negras em todos os espaços. Do contrário, enquanto sociedade, a gente não avança. Sempre vamos ficar patinando. 

 

Você vai ministrar uma aula sobre racismo no mercado cervejeiro no curso Beer Expert. Por que é importante ter esse conteúdo em um curso como esse?

S: Eu me sinto extremamente honrada de dar essa aula para o Science of Beer, porque materializa tudo o que eu sou. 

Eu me constituí enquanto mulher negra, militante do movimento negro para além das redes sociais. As redes sociais vieram muito tempo depois. Eu fiz a minha rede social há dois anos e dois meses. A minha militância, a luta antirracista, a minha insurgência contra as opressões existe há décadas. Não é pra ganhar likes! O meu enfrentamento às opressões, as palestras que eu dou, aconselhamentos, participações em movimentos e em grupos vêm de longa data. 

Estou me juntando ao Science of Beer para tratar de algo que eu já trato no meu dia a dia.  Não existe um lugar para eu me posicionar, 24 horas do meu dia estou me posicionando, em todos os espaços e em todos os momentos. 

Quando o Science fez o convite, aceitei de pronto. Depois eu pensei: "poxa, eu nunca dei uma aula para uma escola de cerveja". Fiquei pensando com aquele frio na barriga. Mas vai ser um desafio.

Eu penso que é a primeira vez no Brasil que uma escola ligada ao mercado cervejeiro vai dar uma aula sobre racismo no meio cervejeiro. Eu não conheço a história de outros países, mas estou falando de Brasil. Com quem conversei não ouvi nenhuma fala que dissesse que já havia tido aula sobre racismo dentro do meio cervejeiro. O Science of Beer está abrindo o caminho, rompendo paradigmas, e espero que outras escolas venham na mesma esteira.

Não vamos conseguir avançar enquanto a questão racial, que é a grande questão deste Brasil, não for resolvida. Quando me formei como beer sommlière, eu fui a única pessoa negra na sala. Conversando com outras amigas eu ouvi o mesmo relato. 

Precisamos normalizar a presença dos corpos negros nesses espaços, para que a gente não se sinta mais estranho dentro dos lugares. Para que a gente possa chegar - como eu gostaria de ter feito tempos atrás -, sentar e tomar meu pint sem receber aqueles olhares de pessoas que me expulsavam ou questionavam o que eu estava fazendo ali.

Para que as pessoas possam entender que o corpo negro pode e deve estar em qualquer lugar, e não só em lugares de subalternidade. Eu parabenizo o Science of Beer por este projeto! Desejo vida longa à instituição e dou parabéns a quem está a frente deste projeto e que venham mais!

 

Confira também: 

 

[Texto] Mulheres negras do mercado cervejeiro que você precisa conhecer e seguir

[Ações afirmativas] Conheça o programa de bolsas de estudo do Science of Beer e saiba como candidatar-se a uma vaga. 

[Curso online] Veja mais informações sobre o Beer Expert e garanta sua vaga na próxima turma que começa no dia 18 de agosto.


*A Cervejaria Implicantes, primeira fábrica cervejeira negra do Brasil, está com uma campanha de financiamento coletivo para manter a cervejaria funcionando. O projeto IMPLICANTES LADO A LADO - Mantendo o legado da Implicância conta com retribuições graduais de acordo com colaboração feita. Clique aqui para conhecer e apoiar a campanha.